Entre Rio e Mar Há Lagoanas - Sobre um encontro de almas
Em um mergulho nas brincadeiras comuns à infância regada por elementos da cultura popular como folguedos, cantigas de roda, repentes e côco de roda. A plateia é envolvida em uma atmosfera lúdica que ameniza as temáticas abordadas no texto. Estar ali, foi para mim, muito mais que assistir uma peça, foi experienciar minha vida de mulher e todas as podas impostas pelo machismo ao longo dela. A passagem da infância para a puberdade e todas as inseguranças, dúvidas, cobranças consigo mesma e dos outros. A relação com o próprio corpo em mudança e o processo de amadurecimento forçado. Assim, as meninas não trouxeram conceitos explícitos do feminismo. O primeiro nó na garganta aperta quando as meninas brincam de ser os pais e reproduzem falas machistas que a maioria de nós já ouviu em algum momento. Com isso, representaram o que nós mulheres já sabemos desde cedo: é mais fácil ser o papai.
É notável que os papéis de gênero impostos pelo patriarcado, sem dúvida, sobrecarregam as mulheres com atividades e cobranças que beneficiam os homens. Vemos isso refletido nas jornadas múltiplas assumidas pelas mulheres ao equilibrar na rotina as atividades laborais remuneradas e as não remuneradas sem falar da carga mental que ela acumula tendo que dar conta de todas as pendências do lar, pois os homens nunca foram preparados para isso. Já as meninas são menos são mais cobradas para atingir uma perfeição utópica no papéis de esposa, mãe e profissional e no fim da escala caso sobre um tempo, mulher dentro dos padrões de beleza inalcançáveis.
No palco, acompanhamos a passagem do tempo na vida das mulheres ali representadas. Essas personagens têm nomes, mas não precisariam, pois poderiam tranquilamente ser qualquer uma de nós. Elas são nós e nós somos elas. Todas, atravessando a infância, vida adulta e terceira idade são afetadas pela tirania de um “velho”. Desde a primeira menina a qual ele engana prometendo uma vida de facilidades e a encarcera em um padrão opressor que confina todas em um ciclo de trabalho incessante. Esse personagem incorpóreo aparenta ser a representação de um antagonista conhecido nosso, o patriarcado. Na fase adulta, vemos as mulheres lidando com o machismo existente nelas mesmas. A maneira como uma critica a outra por ser livre ou conformada demais. Há uma quebra da aspereza dessa realidade com música e comicidade é o momento de aliviar o nó da garganta. Nesse contexto musical e cômico nos é apresentado mais um tema: A violência contra a Mulher praticada pelo parceiro. É inquietante reconhecer em cena os discursos reais sobre o tema, as que sabem que isso não pode ser positivo, as que culpabilizam a mulher e as que têm uma opinião adaptável ao discurso que prevalece seja contra ou a favor da vítima. Mesmo reproduzindo discursos machistas, elas ainda são - mesmo sem saber - vítimas do patriarcado defendendo a “ordem social” que conhecem por não lhes ser apresentada outra realidade possível.
A construção do espaço e tempo sai da linearidade comum e ao mesmo tempo segue uma evolução, pois cada vez que voltamos às etapas Infância, vida adulta e melhor idade descobrimos mais detalhes sobre a estória da primeira menina que é um dos elementos de ligação entre as etapas temporais. Entre idas e vindas as estórias desenrolam-se muito bem. Voltamos à infância e nunca, até este momento, uma brincadeira de “pega pega” foi tão significativa o grito: - Batida sobre todas! Ecoa potente como símbolo da sororidade feminina. O nó folga e o sentimento de empoderamento se espalha no ar. Até ouvirmos retratada a violência sexual contra uma menina, novamente o nó aperta e as lágrimas são difíceis de se conter é a sensação de impotência diante da realidade que entristece.
Outra cena menos pesada é retomada e o nó se desfaz. Não há só tristezas, há a força criadora da mulher ali representada. Das histórias cotidianas de mulheres reais, à entrega das atrizes é tudo sagrado não por ser teatro, mas por tratar de mulheres protagonistas não meros estereótipos orbitando em torno de personagens masculinos com diálogos fúteis. A concepção corporal foi muito bem executada, em cada detalhe sentimos a disposição de corpos prontos pra ação. Os detalhes ação-reação entre atrizes e com o cenário da lagoa imaginária estavam impecáveis. No entanto, há espaço para explorar mais as possibilidades de passagem de cena e a participação da iluminação que conversou mais com a cena na parte final.
Esse espetáculo não fala só do encontro de águas, ele media um encontro de almas. Entre conflitos e levezas, tal qual a vida e o encontro de águas doces e salgadas, assistir “Entre Rio e Mar Há Lagoanas” é transbordar e se conectar à força da mulher Alagoana, Nordestina, Brasileira. É sentir-se consciente do que está posto pelo machismo e a necessidade de mudança que só será possível quando corrermos para a “mancha” e nos apropriarmos do grito de guerra: - Batida sobre TODAS!
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